Um dia qualquer

Santiago Segundo
4 min readSep 12, 2018

--

Imagem: Five Puppies on the Carpet –Edvard Munch.

O homem chega em sua casa. abre a porta. ela emperra no meio do percurso, como sempre. na cozinha, pega um copo e gira a torneira. bebe em um único gole. entra no quarto. tira o chapéu da cabeça e, ao lado de algumas correspondências antigas, coloca-o na escrivaninha.

é dia. meio da tarde. os raios entram pela janela entreaberta. o homem nunca soube onde o sol nasce. tampouco mudaria algo. no quarto, um pouco de poeira flutua no feixe de luz.

o homem sente uma coceira em um local custoso nas costas. ele alcança o ponto com dificuldade. suspira e estica o corpo na cama.

barulhos de pássaros por perto. na área externa, no alto da sua janela, sempre tem um pouco de água com açúcar para os beija-flores.
a porta range e emperra, como sempre. uma visita entra na casa.

olá, como você está?, o homem perguntou para a visita.

estou bem. por favor, não precisa se levantar da cama, fique à vontade. aliás, a casa é sua.

obrigado.

e você, como está?

estou bem.

o que tem feito?

nada de entusiasmante. minha cadela faleceu há uns meses atrás. tenho refletido sobre adotar outro animal.

você sempre gostou deles, não?

sim, sempre. você não quer se sentar?

não, obrigado. estive sentado o dia inteiro. quantos anos ela tinha?

a cadela?

sim.

quinze anos… ela estava cansadinha já.

entendo.

e você, o que tem feito?

bom, você sabe, né?

sei.

trabalhando… desde que mudei para essa cidade, não tenho saído muito. tenho ficado em casa com a família.

hora ou outra, é bom se distrair…

é o que dizem…

lembra daquele cara que surtou nos anos 90?

lembro sim.

não quero ser rude, mas tem algo que posso fazer por você? ainda tenho que ir no mercado… talvez eu vá no centro de adoção…

não está sendo rude. bom, você sabe, marcamos os dias porque queremos. talvez seja um hábito derivado das plantações, dos fazendeiros. marcar as estações, colheitas, et cetera. ou talvez seja apenas um hábito para tratar a ansiedade, algo que nos iluda de termos alguma espécie de controle. enfim, independente da origem dos horários e datas, hoje é o dia. é hoje, disse a visita enquanto ergueu a camisa branca, tirou um revólver cromado da sua cintura e o colocou na escrivaninha.

isso não te aperta a cintura?, perguntou o homem.

um pouco, mas a gente se acostuma. eu penso que sempre iremos nos adaptar. o que você pensa disso?

não penso muito sobre esse assunto. muito menos agora.

entendo.

bom, o que temos de fazer?

você sabe muito bem.

já é hoje, tem certeza?

sim.

não tem como eu ir no mercado antes e passar no centro de adoção? você me entende, não gosto de levar as coisas com a barriga.

não tem como.

entendo.

não quero ser rígido, mas você sabe o que fez.

sim, eu sei. e agora?

não há mais muito o que fazer. sejamos práticos. irei te dar duas opções.

tem um cigarro?

não.

esqueci de comprar. estava pensando em comprar um solto no caminho do mercado, ou do centro de adoção. é muito mais caro o solto, mas estou tentando diminuir.

faz bem.

bom, quais são as opções?

a primeira é a mais usual, o revólver. a segunda opção é um tanto quanto delicada, pois envolve um certo zelo pela persuasão. no nosso caso, da minha parte… melhor dizendo, essa alternativa evitará estorvos póstumos, como, por exemplo, no enterro.

não entendo.

um tiro na testa sempre gera mexericos desnecessários. não precisamos disso.

é verdade, mas precisa ser na testa? um tanto quanto ortodoxo… caso fosse no peito, o terno iria cobrir o ferimento.

não há como, é o método. você entende…

sim, entendo… e a segunda opção, qual é?

é uma substância. o processo é indolor.

compreendo. e o tempo?

aproximadamente dez minutos. o corpo adormece em três.

entendo.

essa opção levam os forenses crerem que foi suicídio. e, quando os especialistas não são especialistas de fato, o laudo pode ser reduzido a um mal súbito.

prático.

sim… tem uma possibilidade grande do segundo laudo acontecer. o lado positivo é que evitaria as conversas desnecessárias sobre as causas do morto.

realmente.

sim.

tem de ser hoje?

sim, você sabe o motivo.

eu realmente gostaria de passar no mercado antes e ir no centro de adoção. não gosto de deixar nada para depois.

não há nada que possamos fazer a respeito disso. pensou em qual é a melhor opção?

a segunda.

imaginei.

por quê?

é uma opção mais prática, apenas isso.

tem como eu tomar um trago antes? esse tipo de trabalho sempre da um pouco de nervoso…

não tem, vai dar chabu problema com a substância.

lembra daquele verão de 98?

sim, como não?

aquela moça era muito bonita.

sim, ela era. qual era o nome mesmo?

não me lembro.

será que amanhã vai chover?

disseram que sim… vamos?

vamos.

Publicado originariamente na Revista Saci no dia 17, de Julho, de 2018.

Link da revista: http://revistasaci.com.br/

Apoie a mídia independente.

--

--

Santiago Segundo

Escritor e pesquisador de Kafka. São Paulo. “Estômago”, Editora Kazuá. Editor da Revista USO.