Esteira azul-bebê

Santiago Segundo
12 min readSep 19, 2018

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A volta do bar é sempre o limiar entre a euforia e a vida que segue. É como uma resignação empenhada em compreender que há vicio nas calorosas conversas ébrias esquecidas, no esmo e nessa liberdade animalesca ungida por ilusões. Em contrapartida, há concomitantemente um sentimento de exílio na construção praticamente involuntária de uma virtude representada na adequação social e econômica.

A questão primordial é a liberdade, e me arrisco a dizer, sempre foi, quando falamos de humanos.

Quando voltei para casa, deixei para trás dois cabras. Um deles é viciado em sexo. Mais viciado em falar sobre sexo, do que no ato em si. Ele tem outro interesse em particular, política. Seu nome é Carleto, um perdedor nato. O outro se chama Nicola Bentevi, um sujeito de traços felinos que é viciado em julgar comportamentos alheios. É um grande espelho ambulante que evita encarar o próprio rosto. Provavelmente ficaram enchendo a cara e cheirando cocaína até o sol raiar, e é nesse momento que eles afrontam o sucateamento de suas liberdades em duas possibilidades: derreter junto de suas idiossincrasias imbecis sob o efeito do calor matinal ou encarar a realidade, seja ela qual for, solitária ou não. A liberdade, em muitos momentos, é um pano de prato velho que possui alguns limitados usos, e todos estão, no seu íntimo, subjugados à sua origem e produção.

Abri a porta e cumprimentei os animais, um cachorro e um gato. Eles sempre esperam na porta. A felicidade é a mesma se fico fora por minutos, horas ou dias. Não possuem a consciência sobre o tempo. Talvez seja essa uma boa vantagem. Peguei uma cerveja. Estou sozinho com os bichanos. Isa Ishii, minha companheira, está em Paris. Viagem a trabalho. Talvez seja esse o motivo de que, nas últimas duas semanas, tenho acessado bastante pornografia na internet. Abstinência ou privacidade em demasia? Não sei.

Tem um pornô que me chama atenção. Talvez seja o meu favorito. Um entregador de pizza cansado toca a campainha de um apartamento. Ele tem o rosto apático de uma noite chuvosa mal remunerada e uma leve barriga de cerveja. Um sujeito comum que apenas quer chegar em casa, coçar o saco e dormir no sofá assistindo a programação da madrugada. Uma mulher com peitos siliconados e roupas enfiadas nas dobras e nos orifícios abre a porta. O entregador abre a caixa da pizza. A moça faz uma expressão lasciva de Oh, meu deus, o que está acontecendo? O diretor dá um close na caixa aberta, onde está a rola do entregador em cima do queijo, do tomate e da massa. Sem mais delongas, começam a fornicar violentamente. Glup, glup.

Entro no Facebook e desço roboticamente a página. O Magnus Opus atual: se decompor numa esteira azul-bebê em busca de vídeos, textos e imagens com as quantidades mais esdrúxulas e cataclísmicas de serotonina e endorfina no menor espaço de tempo; um balé de mentecaptos limítrofes num palco de certezas. O dedo movimenta a rodinha do mouse, Shazam, a mágica está feita. Glup, glup.

O telefone toca, Für Elise. A nostalgia da música do caminhão de gás dos anos 90. Uma época em que vivia-se a expectativa de reestruturar uma jovem democracia usurpada por duas ditaduras, uma civil — banhada pelo sebo do Mussolini -, outra militar — banhada por chumbo e pelo macarthismo. Não bastou. Parece nunca bastar. Voltamos para tempos malogrados e marchas fúnebres: intervenção militar, assassinato a mando do estado, patos de borracha, um homem no poder que extermina o resto da fantasia de uma estrutura minimamente funcional, cassetete nos professores e estudantes, fascistas regurgitando microfones dourados, prefeitos afogando mendigos, o coronelismo com dentes de prata, chacina em Osasco e etceteras retumbantes. Nunca voltamos do chumbo, pois nossas veias coloniais não secam, nosso rosto é frágil. Foi apenas um período de festa de tubarões e crocodilos inescrupulosos que herdaram a patente das tintas verdes e amarelas. A história se repete, mas a memória curta é um pecado conivente; as feridas male-male suturadas pela mídia; negros arremessados nos barrancos; feminicídio; Dos filhos deste solo és mãe gentil. É guerra? É combate? Fumaça, ali, fumaça! Que cheiro é esse, Ludwig? Cadê o gás?

– Quem fala?, pergunto ao chiado do telefone.

– É o Messias, responde Nicola Bentevi numa voz trépida.

– O que é que você quer?

– Os parasitas estão entrando pelo nosso rabo e nos carcomendo por dentro. O que é que você vai fazer? Eu já sei em quem votar!

Desligo o telefone. Não podemos dar muita letra para os alucinados, eles se acostumam rápido, te engolem. É como aquela famosa passagem: É COMO um carrossel, pensou Robert Jordan. (…) Esta é uma roda que sobe e desce. Até agora, girou duas vezes. É uma roda enorme, oblíqua, e cada vez que completa um giro volta ao mesmo ponto de partida. Um lado é mais alto do que o outro, e a cada volta arremessa a gente para cima e traz de volta para baixo, ao começo. Não há prêmios e ninguém embarca nessa roda por vontade própria.

Outra cerveja. Volto para o computador. Anúncios brotam na tela- órgãos pré-cozidos a televisores chineses bizantinos. Não há tempo para espirrar, nem para tirar remela do ouvido. Especialistas têm recomendado tapar as câmeras dos computadores porque sempre tem alguém olhando nossas vergonhas.

Desço mais a página. É quando surge um anúncio de um porco albino na minha linha do tempo. 2018, por um país melhor, Oscar Maroni. O dono do maior puteiro do Brasil está fazendo propaganda política aqui na minha redoma. Não é bobo, lança simultaneamente sua biografia contando como foi de estudante de psicologia e vendedor de cachorro-quente ao posto de barão do sexo — o homem se reinventando no mundo dos negócios. Ninguém fica parado. Mãos atadas! Atas nas mãos! Atlas com cãibra! Glup, glup.

Ilustração: Pedro Mirilli

Algo não está legal. Cerveja? Algo me faz pensar no simpático e acelerado Slavoj Zizek e seu texto Cibermundo/SA, escrito em meados de 2011, onde fala sobre o otimismo pela possibilidade de liberdade no fértil bioma informativo da era digital:

“(…) para citar um texto de propaganda da computação em nuvem: ‘Os detalhes são subtraídos aos consumidores, que não têm mais necessidade de conhecer nem controlar a infraestrutura da tecnologia na nuvem que lhes dá suporte’. Aqui, duas palavras são reveladoras: subtração e controle; para gerenciar a nuvem, é preciso que haja um sistema de monitoração que controle seu funcionamento, e, por definição, esse sistema está escondido do usuário. O paradoxo, portanto, é que, quanto mais personalizado, fácil de usar, ‘transparente’ no seu funcionamento for o pequeno item (celular inteligente ou portátil minúsculo) que tenho na mão, mais toda a configuração tem de se basear no trabalho feito em outro lugar, num vasto circuito de máquinas que coordenam a experiência do usuário; quanto mais essa experiência é não alienada, mais é regulada e controlada por uma rede alienada”.

E ele continua com seu úmido inglês indecifrável: “Os apologistas apresentam a computação em nuvem como o próximo passo lógico da ‘evolução natural’ do ciberespaço, e embora, de maneira abstrato-tecnológica, isso seja verdadeiro, não há nada ‘natural’ na privatização progressiva do ciberespaço global. Não há nada ‘natural’ no fato de que duas ou três empresas, em posição quase monopolista, além de determinar os preços à vontade possam também filtrar os programas que fornecem, dando a essa ‘universalidade’ nuances específicas que dependem de interesses comerciais e ideológicos. ”.

Bom, a frase — qual desconheço a autoria — está valendo: “Se você não paga o produto, o produto vira você.”. Nesse caso, não estamos falando da mensalidade da banda larga, mas o que acessamos a partir dela. Os sites de pesquisas e redes sociais nos mapeiam, traçam nossas inseguranças, nossos pelos pubianos, nossos recordes de solidão e servidão voluntária, nossos anseios, nossas dívidas, nosso miasma, e nos vendem. Shazam! Bruscamente surgem com um bem de consumo semidurável que cabe perfeitamente no seu bolso — depois de você conversar com seu gerente eletrônico do aplicativo do banco — e também organizam as informações mais relevantes para você- e para algum barão agindo como uma Tenia solium pelos bastidores.

Pois bem, o consumo é ideologia, e não precisamos sair do carrossel e reviver a Revolução Burguesa ou a Guerra do Vietnã para entendermos isso.

Somos o produto de solitárias ambiciosas. Somos o caviar da terceira revolução industrial. Produtos de todo o mundo, uni-vos!

A democracia é a forma conhecida mais segura e menos escandalosa de amortizar seu povo, e ela e a internet estão numa trepada de dar inveja no Silvio Berlusconi. Nessa toada, temos o atual escândalo da nossa esteira azul-bebê, o filho pródigo do maior queridinho internacional — desde o Steve Jobs -, ganhador de três óscares, o indômito empreendedor do Vale do Silício, Mark Zuckerberg. Na verdade, é sobre esse episódio que este texto trata. Não exatamente sobre os bilhões de dólares que fogem substancialmente do bolso do Mark, ou sobre os investidores assustados por todo o globo, mas sim, sobre a causa dessa turbulência. Falemos então sobre o Poder e a Liberdade.

Há pouco tempo, um ex-funcionário- um jovem de cabelo rosa chamado Christopher Wylie — delatou uma empresa britânica chamada Cambridge Analytica pela coleta e uso de dados de mais de 50 milhões de usuários — fato que provavelmente garantiu a vitória do leproso por costume Donald Trump, nos Estados Unidos. Christopher jogou merda no ventilador.

Christopher Wylie

A partir de aplicativos disponíveis no Facebook, a Cambridge Analityca — comandada por Alexander Nix — coletava os dados não só dos usuários que faziam uso desses aplicativos, mas também de todos os seus amigos virtuais. Ou seja, a partir de um grupo seleto de pessoas, eles conseguiram acessar informações — até mesmo privadas — de milhões de usuários. Com esses dados e com uma estratégia tétrica, a empresa se oferecia a alterar o comportamento e a opinião do público-alvo, nesse caso, os eleitores americanos.

Christopher Wylie diz, em entrevista ao The Guardian, algo que parecia ser o mantra do projeto: “Se você quer mudar a política, você precisa antes mudar a cultura, porque a política navega pela cultura.” E, para isso, era necessário alterar as unidades de cultura: as pessoas. “Se você quer mudar a política, você precisa mudar as pessoas primeiro, para assim, mudar a cultura”. Depois ele explica a metodologia empregada para reanimar a candidatura do presidente americano: “Se você quer lutar em uma guerra, se você quer vencer uma guerra, você precisa de armas para isso. Ele [Steve Bannon*] queria armas culturais, e nós podíamos construir isso para ele”.

Por fim, Christopher Wylie resume a relação da empresa com os dados recolhidos e o seu respectivo uso: “(…) Coletando essa grande quantidade de dados das pessoas, nós podíamos construir o perfil psicológico de cada eleitor, nesse caso, de todo os Estados Unidos.”

“Então nós sabíamos a qual tipo de mensagem você (eleitor) seria suscetível, incluindo a estética, os tópicos, o conteúdo, o tom, esse tipo de informação. Sabíamos ao que você é suscetível e onde você consome isso. Sabíamos quantas vezes precisaríamos tocar em você para mudar o jeito que você pensa sobre algo”. Christopher Wylie deixa claro que a frase “quantas vezes precisaríamos tocar em você” significa “quantas vezes precisaríamos enviar conteúdo criado por nós para alterar o seu comportamento”. Ele mesmo complementa: “Tínhamos uma equipe inteira de designers, criativos, fotógrafos, produtores de filmes, etc”.

É uma terapia de aversão nos moldes do tratamento Ludovico, com a sutil diferença de nos acusarem de voluntariedade graças os escusos contratos com letras pequenas em que clicamos aceitar — é uma distorção você acusar alguém que almeja se enquadrar socialmente pelos meios atuais, principalmente depois do Sistema traçar o arquétipo do século XXI. A sociabilidade foi sorvida pela Placa Mãe repleta de tubos de cobre e kilobites. Sua irmã analfabeta, Gaia, tá caçando umas pontas e bitucas na Praça Ramos. Ninguém lê a porcaria do contrato. A lei nunca foi uma unanimidade do bom-senso. Tampouco, Deus.

Donald Trump perdeu na contagem bruta dos votos, mas ganhou nas contagens de estados vencedores. A tática funcionou. O jovem delator chamou esse episódio de um experimento antiético. Alexander Nix e os seus empregadores estão a um passo do Cornelius P. Rhoads e dos Rockfeller’s, que promoveram um experimento baseado em disseminar câncer em porto-riquenhos, ou dos nazistas costurando órgãos caninos em humanos. Esses filhos de Nero criaram uma geração de americanos que não conseguem limpar a própria bunda sem ouvir algum hino brutal de incitação ao ódio. É extremamente vil, é praticamente inexpressável, é hedionda a violação do direito de propriedade intelectual do PRÓPRIO indivíduo na privacidade de seu PRÓPRIO crânio. Esse é um problema universal. Quando a brutalidade física some, o interesse é mais refinado e o controle é mais difuso. Não basta sermos o produto em promoção de uma ideologia do consumo, somos os produtos em promoção do Poder e da Liberdade. Nunca basta, e eu não tenho esse direito — na minha condição de um bonifrate abominável -, mas sinto câimbras.

Após a denúncia, a Cambridge Analytica também está sendo investigada na Inglaterra, no Brasil e, possivelmente, em outros lugares. Com o site ainda no ar, podemos ler sua definição categórica: “ A Cambridge Analytica usa dados para alterar o comportamento da audiência”.

Aqui na nossa Pátria Amada ainda estamos confusos entre o controle pela violência ou pela publicidade. Somos o terceiro país com maior número de usuários do Facebook no mundo e nossa polícia tem mais sangue nas mãos que os bandeirantes, e não são lá tarefas tão simples assim.

Mark Zuckerberg, depois de sumir, fugir para as colinas e perder 12% do valor da sua empresa em alguns poucos dias, reapareceu dia 22 de Março e disse: “Foi uma quebra de confiança e sinto muito por isso. Temos a responsabilidade de proteger os dados das pessoas. Nossa responsabilidade é evitar que aconteça de novo.” Prometeu limitar o acesso dos desenvolvedores de aplicativos aos dados do Facebook: “Será um processo intenso, não sabemos o que vamos encontrar”. O queridinho do Vale do Silício tinha conhecimento desde 2015 das ações da Cambridge Analytica. Agora, tem de se explicar ao Congresso norte-americano. Apenas o escândalo, como uma fraude, movimenta nossos Deuses.

Logo eles nos convencem, em nome de um mundo melhor, a cheirar nossas próprias flatulências profissionalmente. Pelo menos ainda temos o Marco Civil da Internet.

Mark Zuckerberg em testemunho no Congresso.

A campainha toca. Uma hora dessas? Bêbado e com sono, abro a porta. Um enorme porco albino me dá um sorriso de ponta a ponta e pergunta:

– Posso entrar?

– Na verdade, eu gostaria que (…)

– Tem uma cerveja?, pergunta Oscar Maroni já entrando. Abre a geladeira e pega uma cerveja. Tem a postura varonil de um cachorro de raça que acabou de marcar território numa guarita com uma longa e desdenhosa mijada.

– Então, o que você está fazendo aqui?

– Cara, você tem acessado bastante vídeos, né?

– Quê?

– Você entendeu direitinho. Qual é seu vídeo favorito?

– Não sei.

– Eu não tenho nenhum. Não preciso. Meu pau é de ouro. Você não consegue conceber a quantidade de mulheres com que eu já transei. Eu gosto da vida REAL! O que é que tem para comer? Estou sentindo cheiro de costela.

– Tem costela.

– É de gente?, diz Maroni num tom jocoso, depois ri como uma hiena com carne entre os dentes.

– Em quem você vai votar?, continua Maroni enquanto se lambuza de costela e gotas de cerveja caem de seu lábio inferior amortecido por algum tipo de prazer oculto.

– Eu estava pensando e (…)

O porco albino Oscar Maroni

– Esse país está uma zona, e de putaria eu entendo. Se acontecer do Temer sair e rolar eleições diretas, vou me candidatar. Se ficar do jeito que está, me candidato esse ano para presidente ou deputado federal. Como presidente, daria carta branca para a Justiça prender todos os bandidos, corruptos, ladrões, safados desse país. Cadeia mesmo! Precisamos é de um sistema que funcione., diz Maroni, sério, me interrompendo. **

– Eu preciso dormir, cara. Você pode me dar licença?

– Quem é essa mulher na foto com você, sua esposa?

– Minha namorada.

– Bonita ela.

– Então, como eu falei, preciso (…)

– Tenho de ir embora! A costela estava ótima! Qualquer coisa me liga.

– Não tenho seu telefone.

– Você entendeu… Qualquer coisa bate uma bronha.

– Boa noite.

– Acredito na iniciativa privada e quero fazer com que o pai brasileiro tenha acesso a um emprego decente, dinheiro para comprar comida aos filhos, acesso à saúde, ao estudo, à aposentadoria…

– Boa noite.

– Por um país mais justo e com mais amor entre nós! Boa noite!

A questão primordial é a… talvez seja uma boa hora para ligar pro Carleto e pro Nicola.

*(Steve Bannon, diretor-executivo da campanha do Donald Trump e ex-presidente executivo da Breitbart News, um site de notícias, opinião e comentários de extrema-direita).

* Trecho retirado da entrevista de Oscar Maroni para a Revista Veja em 29 de maio de 2017.

Texto de jornalismo-literário publicado originalmente pela Revista Vaidapé.

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Santiago Segundo

Escritor e pesquisador de Kafka. São Paulo. “Estômago”, Editora Kazuá. Editor da Revista USO.